Considerada uma obra cult, “O Corvo” é um filme emblemático, cujos elementos serviram de inspiração e têm sido adotados por vários cineastas. Marcado pela tragédia real de sua protagonista, cada aspecto emana melancolia, desespero e uma sensação agoniante das sombras em uma cidade onde o sol nunca aparece.
A estética do filme, está marcada dentro de uma época de mudança social onde os temores da sociedade já não vem dos agentes externos como a guerra ou um desastre nuclear, mas sim da própria natureza humana e sua degradação dentro das grandes cidades. Aqui a distopia aparece através da autodestruição dos modelos e das instituições estabelecidas. Prevalece a delinquência sobre a justiça, o abuso das drogas sobre um emprego honesto e o modelo familiar enfraquece, diante de pessoas que procuram, de maneira egoísta, a satisfação dos seus prazeres antes de se preocuparem com o paradeiro dos seus filhos.
Retrata a voz e a estética de uma geração que deseja a mudança, decepcionada com os modelos atuais, incompreendida e cheia de raiva. Geração que encontrou alívio no movimento pós-punk e gótico, cujos porta-vozes foram bandas musicais como Joy Division, The Cure e Big Black, das quais recorreram grande parte da sua indumentária e discurso ideológico.
O emprego dessa estética obscura e deprimente não é casualidade, muito menos o uso de uma moda exótica como o cinema pré-fabricado de Hollywood nos acostumou. Ela tem sua origem não somente no experimental e até certo ponto autobiográfico trabalho de James O'Barr, mas também no cinema expressionista alemão. Desse movimento derivaram muitas vertentes e gêneros cinematográficos, como o terro, a ficção científica, o cinema negro e em nosso caso de análise, o cinema gótico.
Ele vem do romantismo obscuro do século XV, emoldurado pelas tragédias românticas cujo fim resultava quase sempre funesto. Dentro da corrente cinematográfica caracteriza-se por retratar lugares melancólicos, onde predomina a maldade e parecem ter surgido de um pesadelo. É precisamente uma cidade originada do próprio inferno que vemos retratada em "O Corvo", infestada de demônios organizados em grupos que procuram conduzir a cidade para a anarquia.
A cidade e a própria natureza respondem aos sentimentos do protagonista. Uma chuva constante cobre a cidade na medida em que o anti-herói relembra seu passado com dor e agonia e somente nos momentos de verdadeira esperança uma fraca luz difusa aparece entre as janelas para nos oferecer um respiro.
Possui uma presença importante de elementos misticos religiosos, refletidos sobre tudo na presença onipresente da figura do corvo, cujo papel é servir de vínculo entre o mundo dos mortos e o dos vivos. Dentro da arquitetura, podemos ver também um papel importante do aspecto religioso, refletido pelo cemitério e pelo sombrio e velho tempo, palco do confronto final.
A magnífica visão de uma realidade sombria e ultra violenta por parte de Alex Proyas se conformou como um belo retrato de uma época que serviu de inspiração para uma multidão de cineastas. O historicismo do seu protagonista é tão legendário como sua morte prematura e tornou-se um cânone para posterior cultura gótica. E sem querer, plantaram as bases e abriam possibilidades para as posteriores produções baseadas nos comics, que levariam ao novo cinema de super-heróis da seguinte década.
A Adaptação
James O’Barr foi órfão desde sua infância e foi criado em uma casa para crianças abandonadas. Estudou escultura renascentista e se dedicou a modelagem realista e a fotografia social. Em 1978, sua vida foi marcada pela tragédia quando sua noiva foi atropelada por um motorista embriagado. Ele, depois de seis meses de prisão, foi libertado com total impunidade.
Cheio de raiva, O'Barr alistou-se na marinha e foi enviado a Berlim onde se dedicou a ilustrar manuais militares. Sem ter superado a sua perda deu início ao "O Corvo" como um diário pessoal, que funcionava como uma catarse. Mas, em vez disso, ele entrava cada vez mais na sua dor sem pensar que alguém pudesse ler sua obra.
Quando terminou seu serviço regressou a sua cidade e trabalhou como ilustrador através de pequenos trabalhos. Sua obra foi publicada pelo editorial Caliber Press, com o motivo de utilizar o excesso de papel. O editor nem gostava da obra, mas logo se tornou um sucesso de vendas, sendo adotada por grande parte da subcultura gótica.
O êxito total ocorreu em 1994, quando o diretor Alex Proyas decidiu adaptá-la para o cinema. A tragédia de Brandon Lee criou toda uma lenda sobre o filme, mas fez com que O'Barr enfrentasse novamente uma depressão. Somente Eliza Hutton, noiva de Brandon lhe ajudaria a superar o incidente ao compartilhar sua dor.
CENAS CHAVES
1. O Gótico dentro da Cidade Moderna
Caracterizada por uma arquitetura que procura traduzir espaços sempre funestos vindos de pesadelos. A cidade recria um inferno dentro da terra envolvida por lama e no total caos.
2. Um Lugar onde nunca sai o Sol
A ambientação vem muito do movimento romântico, onde a melancolia está refletida na interminável chuva e nas sombras profundas que cobrem a cidade.
3. O aspecto Mitológico da Morte
Existe uma grande presença de elementos religiosos relacionados a morte como o próprio corvo, sobre tudo o cristianismo, representado pelo cemitério e a igreja de estilo gótico.
4. Um Vigilante sobre os Telhados da Cidade
O filme não somente se torna uma adaptação coerente da obra de O'Barr, mas também se nutre do resto da cultura de comics dos super-heróis, como um vingador que combate o crime.
5. O Historicismo do Anti-Herói
Tanto a atuação dramática como a maquiagem exagerada do protagonista representam perfeitamente sua tragédia e agonia e fazendo com que o filme se tornasse um ícone dentro da cultura popular.
6. A Influência do Expressionismo Alemão
Existe um grande contraste de luzes e sombras que simbolizam a luta do bem contra o mal. A própria estética do protagonista lembra muito a de Golem do filme "O gabinete do Dr. Caligari".
7. A Imagem e a Voz de uma Geração
Tanto a estética do comic quanto do filme foi baseada na, então pouco conhecida, subcultura punk e gótica, sobre tudo nas imagens das bandas como Medicine, Joy Division e The Cure.
8. Cinema Negro e a apologia a Violência
A estética e a ambientação dos assassinatos remete muito ao cinema noir mais depressivo, mas não se limita em mostrar com detalhe a crueldade e violência como castigo aos criminosos.
9. Espaços Industrializados e sem Identidade
Negados a cultura do seu entorno, o movimento gótico dentro do cinema se refugia em espaços pré-fabricados, cantos escuros dentro da cidade sem rastros de identidade temporal.
10. Ecletismo de Culturas Exóticas
O gótico procura influências em culturas cada vez mais exóticas. A presença de uma atriz asiática acompanhada de rituais macabros e o estilo samurai do vilão fazem jus a isso.
11. A Composição do Espaço Público
Uma vez vencido os criminosos que mantinham sequestrada a cidade, as ruas se enchem de crianças que saem a pedir balas. O espaço público volta para as mãos dos seus donos.
12. Nem sempre precisa chover
De forma gradual, a estética escura e deprimente é substituída por um ambiente cheio de luz, que funciona como um respiro que emoldura uma mudança positiva.
FICHA TÉCNICA
Data de Estreia: 1 de Janeiro 1994
Duração: 102 min.
Gênero: Ação / Drama
Diretor: Alex Proyas
Roteiro: David J. Schow / John Shirley
Fotografia: Dariuz Wolski
Adaptação: The Crow Comic, James O’Barr
SINOPSE
Dentro da sombria cidade de Detroit, o músico de rock Eric Draven é brutalmente assassinado junto com sua namorada Shelly um dia antes do seu casamento. O responsável é um grupo de criminosos chamado "Top Dólar", que se encarrega de atemorizar a cidade.
Exatamente um ano mais tarde, Eric ressuscita graças a ajuda de um misterioso corvo, que lhe confere a imortalidade e uma força sobre humana. Cheio de ressentimento irá em busca dos culpados de sua morte entrando em confronto com os planos do rei do crime, que procura reduzir a cidade a cinzas na que é conhecida como a "noite do demônio".